segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

SEBASTIÃO SALGADO NA AMAZÔNIA

YawanawásUm olho na tradição da floresta, outro conectado ao mundo, a comunidade yawanawá, do Acre, vive seu renascimento cultural e é referência em empreendedorismo –após ter sido dizimada e perseguida nos anos 1970


O índio yawanawá Miró, também conhecido como Viná, e seu adereço de cabeça adornado com bico de gavião-real

Com terra demarcada, vento passa a soprar a favor da comunidade

Vovó Alzira, da aldeia Mutum
Amazônia sob o slogan “Uma terra sem gente para gente sem terra”, os yawanawás, gente que habitava aquela terra, estavam quase extintos.
Eles mal resistiram a cerca de um século do ciclo da borracha, que resultou no domínio de seu território por seringais e fazendas, na submissão ao trabalho escravo e em uma epidemia de consumo de álcool.
Apenas os mais velhos falavam o idioma yawanawá. A língua só era usada em ambiente doméstico.
Kanamashi, filha de Toata, da aldeia Amparo
Conforme a memória dos índios, o contato com os brancos ocorreu no auge do ciclo da borracha, entre o final do século 19 e o início do 20. O líder indígena à época era Antônio Luís, morador de uma comunidade que ficava onde hoje o cacique Bira quer implantar uma outra, que se chamará Aldeia Sagrada.
Segundo Bira, os donos do seringal Kashinawá decidiram instalar sua sede no rio Gregório, na margem oposta à da aldeia de Antônio Luís. A empresa ficou ali até a demarcação da terra indígena, nos anos 1980.
O destino passou a soprar a favor dos yawanawás desde que suas terras foram reconhecidas, em 1982, e os seringalistas foram desapropriados pelo governo federal.
O atual momento positivo não é apenas um dado de sorte: os índios tiveram uma visão de futuro, se prepararam para ser globais.
Grande parte desse movimento é atribuída à liderança de Raimundo Tuinkuru (1929-2010), filho de Antônio Luís, que conduziu os yawanawás durante a ditadura militar e o processo de recuperação cultural, a partir dos anos 1980.

Conforme a memória dos índios, o contato com os brancos ocorreu no auge do ciclo da borracha, entre o final do século 19 e o início do 20. O líder indígena à época era Antônio Luís, morador de uma comunidade que ficava onde hoje o cacique Bira quer implantar uma outra, que se chamará Aldeia Sagrada.
Segundo Bira, os donos do seringal Kashinawá decidiram instalar sua sede no rio Gregório, na margem oposta à da aldeia de Antônio Luís. A empresa ficou ali até a demarcação da terra indígena, nos anos 1980.
O destino passou a soprar a favor dos yawanawás desde que suas terras foram reconhecidas, em 1982, e os seringalistas foram desapropriados pelo governo federal.
O atual momento positivo não é apenas um dado de sorte: os índios tiveram uma visão de futuro, se prepararam para ser globais.
Grande parte desse movimento é atribuída à liderança de Raimundo Tuinkuru (1929-2010), filho de Antônio Luís, que conduziu os yawanawás durante a ditadura militar e o processo de recuperação cultural, a partir dos anos 1980.
Pakayuvá, da aldeia Nova Esperança
A partir de um primeiro festival, em 1982, os índios passaram a promover grandes encontros para a celebração de sua cultura, que reúnem hoje centenas de turistas. Além do prestígio, esse turismo cultural representa sólida fonte de receitas.
Em 2001, os líderes da comunidade fizeram um plano estratégico para as décadas seguintes.
“Foi uma grande reflexão sobre o que seria o nosso futuro e, neste momento, 18 anos depois, vemos que realizamos 80% do que sonhamos. Agora, estamos organizando o Plano de Vida Yawanawá, que vai projetar o futuro: como vamos fazer bom uso de nosso território? Como vamos usar as novas economias para não destruir o patrimônio? Nosso desafio agora é pensar como queremos avançar ainda mais para o futuro.”
Os planos incluem a criação de uma Universidade dos Saberes Tradicionais Yawanawá, com projeto do designer paulista Marcelo Rosenbaum, apaixonado pela cultura local, a ser desenvolvido na área da antiga comunidade Aldeia Sagrada.

YAWANAWÁ SIGNIFICA POVO DA QUEIXADA, ALUSÃO AO TEMIDO PORCO SELVAGEM

Olhando o mapa da Amazônia, se o observador traçar uma reta entre o rio Guaporé, no sul de Rondônia, e Tabatinga, no estado do Amazonas –onde o rio Solimões adentra o território brasileiro, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, no extremo oeste–, vai encontrar ao longo dessa linha diagonal de quase 1.500 quilômetros uma grande lista de povos de um mesmo tronco linguístico, chamado pano.
Com rosto pintado de jenipapo, a menina Naun, filha de Matsini, da aldeia Mutum
O tronco pano é comum em áreas do Amazonas, do Acre e de Rondônia –e também no Peru e na Bolívia.
Segundo os arqueólogos, data de quase dois milênios desde que os primeiros índios desse grupo migraram do rio Guaporé, em Rondônia, para o norte, chegando até os Andes e as margens do Solimões.
Como seus vizinhos ashaninkas, povos de língua pano devem ter mantido intercâmbio intenso com o império inca, o que explica referências, nas histórias dos yawanawás, a heróis denominados ”Inka” e a um tempo longínquo “em que viviam sob domínio do ”Inka”. Tais referências aparecem nas memórias de outras etnias de seu tronco linguístico, como a kashinawá e a marubo.
Esse corredor do tronco pano teve origem, provavelmente, no lugar em que hoje está o estado de Rondônia, de onde um ou alguns povos de língua similar começaram a migrar em direção ao norte, há pouco menos de 2.000 anos.
Eles se espalharam em torno dos rios JavariJuruá e Purus, sendo que alguns grupos entraram na região do Ucaialy, no Peru, até as encostas dos Andes, como explica Philippe Erikson em “História dos Índios no Brasil” (1998).
Estudos arqueológicos mostram que esses índios foram os senhores dessa vasta planície úmida até em torno do século 9 d.C., quando um ou mais grupos de língua arawak (como os ashaninkas), vindos do norte e do oeste, conquistaram territórios entre o grupo pano, separando uns dos outros.
É provável que, quando foi rompida a unidade dos povos, se tenha iniciado a formação de dialetos e o desenvolvimento de línguas diferentes. Mesmo assim, há uma homogeneidade linguística.
Na língua pano, há duas palavras para “povo” ou “gente”: ”nawá” e ”bo”. Por isso, as diversas etnias são geralmente conhecidas por esses dois sufixos em seus nomes: yawanawáyaminawá e kaxinawá, por exemplo, ou marubokoruboshipiboconibo.
Há até um mesmo nome, com terminação diferente, para dois grupos que moram em áreas distantes, os brasileiros kaxinawás, do Acre, e os cashibos, do Peru.
Os nomes pelos quais são conhecidos os povos do grupo pano são em geral aqueles que outros grupos lhes deram, frequentemente pejorativos.
É comum os índios não gostarem dos termos pelos quais são oficialmente conhecidos. ”Kaxi”, por exemplo, quer dizer “vampiro”. Os kaxinawás (“povo do vampiro”), recentemente, adotaram outro nome oficial: huni-kuin, que quer dizer “homens verdadeiros”, expressão usada por muitos povos do tronco pano para autodefinição.
Yawanawá quer dizer “povo da queixada”, referência ao porco selvagem. Diferentemente de outros grupos, esses indígenas têm orgulho dessa designação: a queixada é um dos animais mais temidos da floresta por andar em bandos coesos e assim vencer seus predadores.
Segundo a enciclopédia digital “Povos Indígenas no Brasil”, do Instituto Socioambiental, os grupos pano designados como nawásformam um subgrupo dessa família por terem línguas e culturas muito próximas e por terem sido vizinhos durante um longo tempo.
Quem anda pela rua na cidade acriana de Cruzeiro do Sul, referência urbana para muitos índios do Acre e do oeste do estado do Amazonas, testemunha com facilidade conversas fluentes entre kaxinawás e marubos ou, com alguma dificuldade, com yawanawás.
Os idiomas são parecidos, o que torna um falante de língua pano o tradutor preferencial para os contatos com vários outros: os kaxinawás conversam com os marubos, que falam com os matsés, que se entendem com os matis, que compreendem os korubos
Maria Clara, da aldeia Mutum
Contra o processo de redução populacional sofrido ao longo do século 20, os yawanawás incorporaram muitos indivíduos de outras etnias do grupo pano, como araras, shanenawásrununawásyaminawás e katukina-panos.
Diferentemente de outros grupos linguísticos, como o tupi, que inclui etnias muito dispersas e diferentes, as do grupo pano cultivam proximidade e intercâmbio cultural. Pessoas de diferentes grupos étnicos podem conversar entre si.
O cacique Bira conta, por exemplo, que os yawanawás têm recebido dos grupos de índios xipibos e konibos, do Peru, muitas informações sobre tradições agrícolas e espécies vegetais que haviam sido esquecidas por seu povo durante os anos de processo de quase extinção.

Gavião está no mito de origem dos índios do grupo pano

Segundo o mito narrado pelo cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá, os povos panos nasceram das penas de um gavião-real. “De seu ninho no alto de uma sumaúma, o gavião saía a caçar para alimentar os filhotes. Quando faltaram presas na floresta, passou a capturar crianças índias. Um dia, um caboclo da aldeia construiu uma escada para chegar até o ninho. Ao alcançá-lo, matou a ave e tirou suas penas, guardando-as em um cesto. Desceu e foi para sua casa. À noite, ouviu um rebuliço. Abriu o cesto, não viu nada, só as penas. Isso se repetiu por vários dias, até que em uma manhã começaram a sair do cesto crianças pulando de alegria. Cada uma dizia seu nome: Shawãdawa, Yawanawá, Kaxinawá, Xaranawá, Duwanawá, Poyanawá etc. Eram os povos da língua pano.”

Projeto de Aldeia Sagrada mistura passado e futuro

Os yawanawás da comunidade Nova Esperança acalentam o plano de criação da Aldeia Sagrada, a ser erguida no local onde viviam seus antepassados até a implantação de um seringal onde, por décadas, os índios foram obrigados a trabalhar. O projeto é uma viagem ao passado e ao futuro; a pretensão é erguer no local construções inspiradas no estilo indígena tradicional, mas com recursos da arquitetura contemporânea. O responsável é o designer paulista Marcelo Rosenbaum, que pretende criar uma espécie de Minha Casa Minha Vida rural, com adaptação das regras do projeto estatal de habitação popular para as condições específicas da floresta e uso de materiais da região.
Miró, um dos especialistas em artes plumárias, prepara cocar que será usado pelos líderes durante rituais na aldeia

Líderes ligam aldeia ao mundo contemporâneo

Joaquim Tashka Yawanawá é um exemplo da inserção dos yawanawás na globalização. O líder da comunidade Mutum é uma espécie de embaixador de seu povo desde que foi escolhido pelos líderes mais velhos para estudar nos Estados Unidos e adquirir conhecimento sobre o ambiente internacional.
“Nós temos que ter um novo diálogo no século 21, conversar ao mesmo tempo com o contemporâneo e o tradicional. É preciso falar a língua dos negócios do mundo atual, e o idioma não pode ser um empecilho”, diz.
Neste ano, ele esteve no festival de cinema Sundance (EUA), onde apresentou o documentário ”Awavena” –sobre a xamã Hushahu–, no Fórum Econômico de Davos (Suíça) e em outros eventos internacionais. “Viajo o mundo todo, mas sempre conectado com meu povo. Isso atrai pessoas, que vêm contribuir, o que ajuda os yawanawás”.
Foi o empreendedorismo dos índios que os levou a criar há quase três décadas uma parceria com a empresa norte-americana de cosméticos Aveda, para quem vendem urucum (semente que produz uma tinta vermelha). Plantam açaí com financiamento agrícola do governo do Acre, para vender a clientes regionais.
Seus trabalhos com miçangas são cobiçados nas lojas de artesanato indígena no Brasil e no exterior.
O cacique Biraci Yawanawá, na maloca cerimonial da futura Aldeia Sagrada, usa cocar feito com penas do gavião-real
Os índios também realizam festivais anuais nas comunidades de Nova Esperança e Mutum, quando turistas de todo o mundo vêm à Terra Indígena Rio Gregório para celebrar os rituais religiosos dos yawanawás. Nos últimos anos, passaram a promover também viagens específicas para outras comunidades. As pessoas que não querem participar dos rituais procuram outras comunidades –são sete à beira do rio–, como a Sete Estrelas, dos índios katukina-panos, onde são realizadas atividades com plantas medicinais.
Casais que não conseguem ter filhos costumam procurar essa comunidade. Quem quer acompanhar uma caçada de dois dias na floresta vai para a aldeia Amparo, enquanto Matrinxã se tornou referência para a comida tradicional dos yawanawás.
Essa especialização das comunidades é orientada por um projeto estratégico de aproveitamento das potencialidades “econômicas, culturais e espirituais” da terra indígena que o líder chama de Plano de Vida Yawanawá, uma espécie de Plano Diretor Estratégico.
O cacique Biraci conta que está em implantação um programa de produção intensiva de alimentos da floresta. Na previsão dele, os yawanawás chegarão a 2025 com 100 mil pés de açaí, além de pés de cacau, café, cupuaçu e banana. “Selecionamos 58 espécies de plantas que queremos ter conosco, para garantir nossa alimentação”, diz.

ÁREAS DE CONSERVAÇÃO NO ENTORNO PROTEGEM A RESERVA DOS YAWANAWÁS

A Terra Indígena Rio Gregório é habitada por índios das etnias yawanawá e katukina-pano. Na beira do rio, localizam-se sete comunidades, entre as quais Mutum e Nova Esperança, as maiores.
Identificada pela Funai em 1983, a área foi homologada e registrada como Patrimônio da União em 1991, com uma área de pouco mais de 90 mil hectares. Depois de 15 anos, os índios reivindicaram uma área adicional, que foi demarcada por iniciativa do governo estadual e declarada como parte integrante da terra indígena em 2007, dobrando a extensão original para os atuais 187 mil hectares. Uma área de 50 mil hectares está em processo de homologação para ser incorporada à terra indígena.
O pajé Tatá Txanu Natasheni, morto em 2016, aos 104 anos
Segundo Biraci Yawanawá, um conjunto de áreas de conservação e de outras terras criou uma proteção para a reserva dos yawanawás: “Nossa terra é privilegiada, estamos quase totalmente cercados por diversas unidades de conservação”.
Ele se refere ao quase anel formado pela Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade (a oeste), e às terras indígenas Praia do Carapanã e do Igarapé Primavera (a leste).
A saúde também não desperta maiores preocupações: equipes de atendimento da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) visitam as aldeias a cada 90 dias, e os yawanawás não têm dado trabalho a eles: entre 2017 e o primeiro trimestre de 2018, por exemplo, houve só um caso comprovado de malária, e nenhum de dengue, males comuns em outras áreas da Amazônia.
Os habitantes da Terra Indígena Rio Gregório são registrados como moradores do município de Tarauacá, cuja sede fica a cerca de 200 km dali. Com isso, a cidade é sua referência para relações com o Estado nacional: 70% dos eleitores votam naquela cidade, por exemplo.
Ali também buscam tratamentos de saúde mais sofisticados, fazem documentos e recebem aposentadoria ou Bolsa Família. Mas o deslocamento é um limitador. Só pelo rio, pode-se levar oito horas em canoas com motor (voadeiras); por terra, são vários dias de caminhada. Devido a essa dificuldade, há relatos de que beneficiários do Bolsa Família desistiram do programa, e a abstenção eleitoral também costuma ser alta.

RIO GREGÓRIO ERA MAIS CAUDALOSO E CHEIO DE ‘BICHOS GRANDES’

Embora a Terra Indígena Rio Gregório pertença ao município de Tarauacá, as milhares de pessoas que visitam o local anualmente desembarcam em Cruzeiro do Sul, cidade que tem um aeroporto maior e recebe voos de Brasília.
Como em outros destinos amazônicos, os aviões costumam chegar no início da madrugada. O viajante deve dormir pelo menos uma noite na cidade, o que, na época dos festivais yawanawás, deixa os hotéis lotados, com turistas do mundo todo.
O rio Gregório visto a partir do promontório onde fica a aldeia Nova Esperança
No dia seguinte, a viagem segue por cerca de quatro horas pela rodovia BR-364, que liga Cruzeiro do Sul a Rio Branco. Na ponte sobre o rio Gregório, de um pequeno ancoradouro, saem as voadeiras com destino à reserva. A viagem leva de cinco a oito horas, dependendo do motor e das condições do rio, geralmente cheio de tocos e galhos de árvores.
O rio Gregório é um afluente do Juruá. No passado, era caudaloso. O cacique Biraci conta que, há 50 anos, barcos de 30 toneladas subiam o rio. Seu pai dizia que um homem podia ficar de pé no porão do barco. “No rio, tinha bicho grande, tartaruga, jacaré-açusucuri. Hoje, todos desapareceram, o rio assoreou.”
O Gregório cruza terras novas, em cujas margens não há estruturas de pedra. Em consequência, como ocorre também no Madeira, em Rondônia, as margens cedem à força das águas, que comem os barrancos e fazem o curso do rio mudar de tempos em tempos.
Em frente à comunidade Nova Esperança, o traçado do leito mudou recentemente; no último período de cheias, o rio “cortou caminho” por uma mata e, em vez de uma curva, ficou com um traçado mais reto.

Apresentador Ratinho, da TV, doa terra aos índios

O apresentador de TV Carlos Massa, o Ratinho, é acionista de uma empresa que tem 200 mil hectares no município de Tarauacá. Cerca de 10% superior à da Terra Indígena Rio Gregório, a propriedade é vizinha à área dos yawanawás, que reivindicam parte dessas terras. Em 2005, quando a empresa apresentou um projeto de exploração de madeira, veio à tona a participação de Ratinho no negócio. Desde então, a propriedade vinha sendo alvo de disputa entre a empresa e os índios. O apresentador acabou doando aos índios, em 2009, a área por eles reivindicada (cerca de 50 mil hectares). A empresa considerou que assim criaria uma “zona de silêncio” entre as comunidades indígenas e a atividade madeireira, explica o cacique Bira.
Janete, da aldeia Escondido, que usa pulseira com desenhos geométricos feitos com miçangas e segura jijus pescados no rio

Primeiras pajés mulheres resgatam banhos curativos

Duas mulheres fazem a fama dos yawanawás entre outros indígenas do mundo: as irmãs Putani e HushahuElas são as primeiras, na história de seu povo, a se tornarem pajés.
Tradicionalmente, só os homens eram iniciados no conhecimento profundo das tradições religiosas. No começo dos anos 2000, restavam apenas três pajés entre os yawanawás, todos já idosos: Raimundo Tuinkuru e os irmãos Yawa Runi e Tatá Txanu Natasheni.
Foi nessa época que as duas filhas de Tuinkuru o procuraram para dizer que queriam receber a formação de pajé. O pai imediatamente recusou, por uma questão de gênero. Não havia a memória de mulheres pajés entre seu povo.
Marizete, ao centro, com sua nora Alice, à esq., e sua filha Maria Adelaide, da Aldeia Nova Esperança
Depois de um tempo, as duas voltaram a insistir na ideia. Como argumento, elas diziam que nenhum homem havia sido iniciado e que todos os conhecimentos dos xamãs poderiam ser perdidos.
Putani conta que seu pai, então, preferiu que outro pajé decidisse. Tatá foi consultado e concluiu que não havia problemas.
“Mas, para provar que mulheres poderiam resistir às agruras da iniciação, os nossos sacrifícios deveriam ser ainda maiores”, continua Putani. “Meu pai disse ao Tatá: faça com elas o dobro do que faria com homens, para que ninguém duvide de que são corajosas.”
E assim, em 2004, as duas mulheres iniciaram a formação, que começa com um longo jejum. Por vários dias a pessoa só se alimenta com a batata de uma planta chamada mucá, considerada sagrada.
Quem está fazendo a iniciação para se tornar pajé fica acampado na floresta, longe da comunidade. Só pode ter a companhia de quem está preparando sua dieta.
Putani e Hushahu escolheram isolar-se no local onde seus antepassados viviam no tempo do contato com os primeiros seringueiros. É o lugar denominado Aldeia Sagrada. “Neste lugar está enterrado meu avô. Ele disse que, se a gente precisasse de sua ajuda, bastaria pedir”, conta.
Passados quase 15 anos daquela iniciação, o lugar agora está sendo preparado para receber uma nova comunidade. Os yawanawás vão voltar a ocupar o lugar de onde saíram no passado. À época, o local era uma área isolada na floresta.
“Nosso processo de conhecimento e cura é baseado em sonhos. Você sonha com as doenças que vai ter; o pajé sonha com as doenças que terá de curar nos outros. Por isso você precisa ficar isolado, ouvindo o silêncio. Não pode ouvir zoada. A ideia é que você ouça os passos das pessoas, o tom de sua voz. Tudo isso é revelador de como está a saúde delas, desde que você saiba ouvir os detalhes”, explica Raimunda Putani, seu nome completo.
A dieta evita carnes de animais associados a características consideradas inadequadas para um líder espiritual. “A anta é um bicho pesado. Por isso, quem está no mucá não pode comer sua carne, ela deixa a pessoa pesada. Já o macaco capelão é um bicho que canta, fará bem ao pajé. O jabuti, normalmente muito desejado, anda muito devagar, e sua carne deixa os pensamentos lentos. Já peixes e aves são rápidos”, explica Putani. Assim os alimentos são divididos entre os que podem ou não ser consumidos durante os vários meses de formação.
Uma vez iniciada, Putani queria escolher um caminho próprio para desenvolver, uma técnica sua. Ela se lembrou da organização Conselho Internacional das Treze Avós Nativas, formada em torno de mulheres que são referência em culturas tradicionais. Pensou em consultá-las. “Vi um documentário sobre as Treze Avós, mas elas estavam no Canadá, e eu não poderia ir ao seu encontro. Um dia tive uma visão que me aconselhou a construir um trabalho próprio. Escolhi então duas técnicas antigas dos yawanawás que não estavam mais sendo usadas: o banho de argila e o banho de ervas. ‘Faz essa cura e leva para a Aldeia Sagrada’, me disse a visão. Por isso estamos voltando para cá.”
Desde então, ela diz fazer rituais usando essas técnicas: “É a cultura tradicional que vivemos. Porque, se você vive como seus ancestrais, a cultura nunca acaba”, diz.
Putani tinha 27 anos quando completou a formação de pajé, em 2005. Em 2006, ganhou o Prêmio Bertha Luz, concedido pelo Senado a mulheres que se destacam na luta por direitos femininos.
A história de sua irmã, Kátia Hushahu, é contada no documentário imersivo ”Awavena”, produzido em realidade virtual pela diretora australiana Lynette Wallworth. O filme estreou neste ano no festival Sundance e foi apresentado também no Fórum Econômico de Davos.
As pajés preencheram realmente o vazio que temiam: seu pai morreu em 2010, com 80 anos; Tatá morreu em dezembro de 2016, com 104 anos, e o também pajé Yawa Runi morreu em março deste ano, aos 106.

Etnia adota casamento entre primos cruzados

O sistema de parentesco adotado pelos yawanawás é chamado dravidiano, com casamentos entre primos cruzados: a pessoa se casa com os filhos da irmã do pai ou do irmão da mãe. Há casos de poligamia, cada vez mais raros, geralmente com um marido e uma ou mais irmãs (chamado sororato). O hábito determina que, após o casamento, o marido se mude para perto da casa da família da mulher (costume chamado de uxorilocalidade).

Bebês ganham nome escolhido pelo pai

Ao nascer, os bebês recebem um nome dado pelo pai e, às vezes, um outro, escolhido pela mãe. Ambos buscam repetir nomes de tios e tias da criança em homenagem aos parentes, por vezes já mortos. Assim, os nomes se repetem alternadamente a cada duas gerações. Hoje, os índios são registrados com um nome em português e, geralmente, os documentos oficiais incluem também o nome da etnia como se fosse o sobrenome.

Mito yawanawá explica a interdição do incesto

Os mitos servem para traduzir as grandes coisas -como a criação do mundo– e também as pequenas. O cacique Bira conta um cheio de moralidade para explicar que dois irmãos jamais podem namorar. “Um dia, uma menina reclamou à mãe que todas as noites alguém ia a sua cama no escuro para bulir e brincar com ela. A mãe recomendou à filha fazer uma tintura de jenipapo e passar no rosto todo para marcar o buliçoso. Então, no dia seguinte, o irmão da menina desapareceu. Quando o encontraram, ele estava pintado de jenipapo. Foi condenado à morte e teve a cabeça cortada. A cabeça rolou e correu em direção à mãe. Ali, no chão, a cabeça do índio pediu água. A mãe disse que não poderia ajudá-lo. O índio jurou então uma vingança: iria morar na Lua e, a partir daquele dia, a primeira relação de toda menina deveria ser com ele. As mulheres sangrariam sempre após essa primeira relação. Esse seria o sinal de que elas podiam namorar a partir daquele momento.”

Quem flerta com mulher grávida recebe castigo

Um rapaz aparece na casa do cacique Biraci reclamando de um terçol. Bira pergunta a ele: “O que você andou fazendo?”. Em seguida se volta aos demais e explica: “Quando um homem paquera uma mulher grávida, fica com terçol”.
FolhA DE Sao Paulo

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