sábado, 24 de novembro de 2018

A amizade de Nelson Mandela com o homem branco que foi seu carcereiro em prisão do apartheid


Por Lucas Vidigal, G1

Christo Brand ajudou Mandela a conhecer a neta ainda no cárcere, quebrando as regras do presídio de segurança máxima.


Christo Brand tinha apenas 19 anos quando conseguiu, em 1978, o emprego de carcereiro para evitar o árduo e longo serviço militar obrigatório na África do Sul. Alocado para trabalhar na ilha Robben, o rapaz foi avisado de que a prisão de segurança máxima encravada ali abrigava um "terrorista perigoso": Nelson Mandela, condenado em 1963 à prisão perpétua por liderar a luta contra o apartheid e que se tornaria presidente do país e Nobel da Paz.
De passagem pelo Brasil, Brand contou ao G1 como um abraço entre avô e neta transformou a relação dura entre presidiário e guarda em uma amizade que durou até o fim da vida do ex-presidente sul-africano, morto em 2013.
Fachada da prisão de segurança máxima da ilha Robben, na África do Sul. Hoje, local funciona como museu. — Foto: Andrew McConnell/Robert Harding Heritage/AFP/Arquivo

O abraço

Brand percebeu que as poucas mas cordiais palavras trocadas entre ele e Mandela se transformaram em amizade no inverno chuvoso de 1980. O silencioso abraço que o líder sul-africano deu, ainda dentro do cárcere, na neta Zoleka, então com 4 meses, marcou o início de uma relação mais próxima entre os dois.

"Ele estava muito emocionado, cheio de lágrimas nos olhos. O jeito que ele beijava e abraçava a bebê... ali percebi que tínhamos nos tornado amigos", contou Brand.
O jovem carcereiro arriscou perder o emprego ou, pior, ser preso ou mesmo morto pelo regime. Isso porque presos políticos na ilha Robben eram proibidos de receber visitas ou ter qualquer contato com menores de 16 anos. Até os filhos dos guardas que moravam naquela ilha de 5km² a noroeste da Cidade do Cabo tinham de tomar distância segura para ficar longe dos olhos dos prisioneiros.
Robben Island, onde Nelson Mandela ficou preso, na África do Sul — Foto: Divulgação/South African Tourism
A história começou quando Winnie Mandela, então esposa de Nelson, enrolou a bebê Zoleka por debaixo das roupas e tomou um barco até a ilha Robben. Ela sabia da proibição. A ideia, portanto, era mostrar brevemente, durante a visita, a menina ao avô detido já havia 17 anos.
O plano deu errado. Na revista, os guardas descobriram Zoleka enrolada entre os tecidos. "Winnie me implorou que deixasse o bebê entrar, mas a resposta foi não", recorda Brand.
Apesar da proibição, o carcereiro se sensibilizou com o caso. Afinal, Brand nutria uma simpatia por aquele que os diretores do presídio chamavam de terrorista. Mandela não se parecia nem um pouco com a pessoa perigosa descrita pelos chefes. Era um interno que costumava puxar assuntos com o carcereiro, não sobre o apartheid ou a luta que o levou para as prisões – mas, sim, sobre a vida do jovem guarda da prisão.
Brand e o supervisor trocaram olhares. Haveria um jeito de permitir o encontro de avô e neta. Mas, para isso, ninguém poderia saber. Nem mesmo Winnie Mandela.
"Ela ainda tentou me dar alguma propina para que eu mostrasse a criança, e eu neguei", relembrou o ex-carcereiro.
Zoleka, filha de Nelson Mandela, em discurso em 2011 — Foto: Ben Stansall/AFP/Arquivo
Os carcereiros, então, falaram que guardariam a bebê Zoleka enquanto Winnie visitasse Mandela. Era uma sala com um vidro dividindo prisioneiro e visitante, com um microfone para que os dois falassem. Tudo vigiado pelas autoridades da África do Sul do apartheid.
Brand, então, fechou Winnie em uma antessala por alguns segundos, como se fosse sem querer. Nesse tempo, ele foi até onde Mandela estava e entregou a bebê em seus braços. Tudo muito rápido.
"Ele beijou a bebê duas vezes e havia lágrimas em seus olhos. Rapidamente, peguei o bebê de volta e fui até onde estava Winnie. Pedi desculpa por tê-la trancado na sala", contou.
Nelson Mandela e Winnie caminham de mãos dadas após Nelson deixar a prisão na Cidade do Cabo, na África do Sul, em 11 de fevereiro de 1990 — Foto: Associated Press
Brand soube que o plano de fazer Mandela conhecer a neta funcionou porque nem Winnie sabia do encontro. "Ela me implorou de novo para que eu mostrasse a criança, e eu novamente neguei", relatou. Até Mandela sair da prisão, Winnie não sabia do encontro entre o então marido e a neta. "Foi um segredo guardado durante anos."
Winne e Nelson Mandela se separaram em 1996, depois de quase 40 anos casados, e ela travou batalhas judiciais pela propriedade de uma casa onde viveram – Mandela não deixou herança à ex-mulher. Winnie, que também era ativista na luta contra o apartheid, morreu em abril deste ano, aos 81 anos.

O desconhecimento

"Ninguém nasce odiando outra pessoa por causa da cor de sua pele ou de onde ela vem ou sua religião" – frase de Nelson Mandela na autobiografia "Long Walk to Freedom"
 Branco de origem africâner – grupo étnico descendente dos colonos holandeses na África do Sul –, Brand nasceu e cresceu no país do apartheid. Mas apesar das diversas proibições aos povos negros, a criação do ex-carcereiro em uma distante fazenda no interior o deixou longe da repressão às revoltas populares pelo fim do sistema racista. Tanto que ele nunca ouvira falar de Mandela até chegar na ilha Robben.
"Não havia discriminação por cor nas fazendas. Nós éramos muito próximos dos trabalhadores", contou o ex-carcereiro. Brand só percebeu a diferença quando se mudou para a cidade, ainda na juventude.
Junho de 1964 - Oito homens, entre eles o líder anti-apartheid e então membro do Congresso Nacional Africano Nelson Mandela, são levados do Palácio da Justiça em Pretória após condenação à prisão perpétua. Eles aparecem erguendo os punhos em sinal de luta — Foto: AFP/Arquivo
As restrições eram várias. Havia bairros somente para brancos, em que negros sequer podiam passar. "Só entravam caso tivessem um emprego, caso contrário poderiam ser presos", relembrou. Havia também os serviços restritos como restaurantes, ônibus, trens e até bebedouros públicos. Casamentos e mesmo relações sexuais entre pessoas de raças diferentes eram proibidos por lei.
Ter crescido em meio a pessoas de raças diferentes, porém, fez Brand não entender o porquê da segregação racial na África do Sul. Por isso, diferentemente dos colegas, o jovem carcereiro não nutriu, de pronto, um ódio contra Mandela.
"Meu pai, quando me criou na fazenda, sempre me falava: 'não olhe para a cor da pele'. Então eu cresci respeitando", afirmou Brand.

A cadeira do presidente

A amizade contida entre Mandela e Brand na prisão se fortaleceu quando o líder sul-africano foi, enfim, liberto em 1990. Quatro anos mais tarde, a África do Sul elegeu Nelson Mandela presidente do país – o cargo mais alto possível no país era ocupado por alguém antes perseguido pela luta contra o racismo.
Mandela conseguiu para Brand um emprego como gerente administrativo e de logística na Assembleia Constituinte. Vez ou outra, conseguia tirar um tempo para visitar o novo presidente.
Nelson Mandela levanta as mãos enquanto anda dentro da 'Johannesburg Stock Exchange' em 22 de abril de 1994. — Foto: Corinne Dufka/Reuters
"Quando Mandela virou presidente do nosso país, ele continuou meu amigo. Ele não tinha mudado, ele ainda era a mesma pessoa humilde que eu reconhecia. Até quando eu entrava no gabinete dele, ele apontava para a cadeira dele e dizia: 'Senhor Brand, essa é a cadeira do presidente, sente-se na cadeira', quando a gente tomava um café juntos. Sabe, ele era essa pessoa, sempre me ajudando."Brand ainda frequenta a casa da família da Mandela, com quem tem boa relação. "Uma vez, a imprensa perguntou à filha dele como era a relação do ex-carcereiro com o presidente", contou.


"Ela respondeu: 'Não, não, ele não é ex-carcereiro do presidente. Ele é parte da família."

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